Desperto com os primeiros raios de luz de um dia de verão. Vejo no celular a previsão do tempo que mostra um dia com poucas nuvens e marcando 12ºC em El Calafate, na Patagônia Argentina, uma das cidades mais ao sul do planeta Terra. Fico na expectativa para fazer um dos passeios mais diferentes da minha viagem: ver e caminhar sobre um monte de pedras brancas e azuis, que carinhosamente passei a chamar de Sereia de Gelo.
Viro para o lado, e vejo na cama de solteiro do nosso pequeno bangalô, minha filha de 14 anos que ainda dorme toda encolhida e abraçada no aconchego do seu edredom quentinho. No dia anterior, com braços cruzados, cara fechada e bico grande, ela brigou comigo de forma birrenta porque a deixei dormindo, quando fui caminhar à beira do lago e flagrei um pescador extasiado por seu troféu, um salmão de 10 quilos e 1 metro de tamanho. O dia anterior foi extremamente cinzento, nublado e chuvoso. Quem diria que nesse novo dia, ao puxar a cortina e espiar pela janela de vidro, eu veria um céu azul e com poucas nuvens.
Sento ao lado dela na cama, afago seus cabelos, dou-lhe um beijo na testa e digo que vou fazer uma caminhada pela região. Ela, ainda curtindo o friozinho da manhã, se encolhendo, puxando e abraçando ainda mais forte seu edredom, diz que prefere ficar dormindo. “Filha, o céu está azulzinho. Está lindo.” Abrindo apenas um olho, ela me julga desconfiada. Afinal, o dia anterior tinha sido um dia totalmente escuro. Sussurrando para não acordar a mãe dela, prometo que a deixaria morder meus glúteos se o céu não estivesse azul. Ela abre um sorriso e, nesse momento, tenho certeza que ela torceu para que o dia estivesse nublado para poder me fazer cumprir a promessa.
Fazemos nossa caminhada matinal pelo parque e após apreciar um café para nos esquentar nesse friorento verão, nos preparamos para visitar o Parque Nacional de Los Glaciares, o principal ponto turístico da região. De carro, percorremos 50 quilômetros por uma estrada que lhe faz querer parar a cada curva. Entretanto, o compromisso do horário com o passeio não nos permitia desacelerar o nosso ritmo.
Chegamos bem em cima do horário agendado, sendo os últimos a subir na embarcação que nos levaria até a outra margem. O queixo praticamente arrastava pelo chão, ficamos boquiabertos com um dos cenários naturais mais surreais e diferenciados que já visitamos dos 5 continentes. Um paredão de gelo, da altura de um prédio de 15 andares e 5 quilômetros de extensão frontal. Distância que me faz lembrar dos meus treinos de corrida matinais.
Após instruções do nosso guia, seguiríamos para uma caminhada. Colocamos os grampones em nossos tênis, um artefato com travas para andar com segurança sobre o gelo. No começo da caminhada, você se “arrelia”, da mesma maneira que acontece quando você raspa com os dedos aquela textura de gelo que fica colado nas laterais do freezer da vovó. O caminho parecia um compacto e amontoado de gelo cristal triturado.
O dia estava tranquilo para os padrões locais. Muito ensolarado, use protetor solar, e ventava forte esporadicamente, não esqueça do protetor solar, é sério. Fizemos uma caminhada de duas horas com várias paradas para fotos e mais curiosidades.
Durante o caminho, era difícil não observar os pequenos córregos de água potável que deslizavam por labirintos subterrâneos que mais pareciam um parque aquático com toboáguas. Dava até vontade de se aventurar pelas galerias.
O som emitido pelas geleiras lembrava aqueles relâmpagos que rasgam o céu. Os gritos das geleiras eram contínuos e encantadores, fazendo com que eu me sentisse nas fábulas do marujo hipnotizado pelo canto da sereia.
Despertado pelo guia, ele informa que esses sons são gerados pelas movimentações e atritos entre os gigantescos blocos de gelo. Blocos que se movem três metros por dia. Blocos que se formam nas Cordilheiras dos Andes, percorrem 25 km por décadas até chegar na frente da geleira e finalmente chegar sua vez de se desprender da manada e seguir seu rumo sozinho pelo restante da sua vida.
O Glaciar Perito Moreno marcou a primeira semana do meu ano sabático. Identifiquei-me quase que instantaneamente com aquele bloco de gelo que abandonou o aglomerado de gelos corporativos para se aventurar pelo mundo.
Toda aquela cantoria do glaciar, produzida de forma tão harmônica, está registrado em minha memória, assim como um marujo apaixonado pela sua sereia, de gelo.