Eu mal tinha acabado de sair do colo quando meu passaporte foi carimbado pela primeira vez.
Disney? Que nada! Com pouco mais de 2 anos de idade desembarquei no Iraque, acompanhada de meus pais.
Claro que não lembro dessa viagem e se sei de sua existência é pelo documento amarelado, que ainda guardo, e por algumas poucas fotos, em que estou sempre com o mesmo casaco vermelho.
Eu nem tinha crescido muito depois disso quando meus pais seguiram caminhos diferentes na vida, e tive que aprender a conviver com a experiência de ter duas casas.
Uma ficava em Congonhas, a de Minas Gerais, nada a ver com o maior aeroporto do Brasil. Uma cidade pequena, que mesmo com seus 12 profetas em pedra sabão, uma das obras mais impressionantes do escultor barroco Aleijadinho, é bastante esquecida pelos turistas que percorrem o circuito do ouro, mas recebe anualmente milhares de pessoas na mais importante peregrinação religiosa de Minas Gerais: o Jubileu do Senhor Bom Jesus de Matosinhos.
Há quase 400km de distância ficava meu outro quarto, na cidade de Niterói, Rio de Janeiro, onde o ar das montanhas de Minas era substituído pelo cheiro do mar. Viajar era preciso.
Ainda tinham os escapes para a praia dos mineiros, em Guarapari, no Espírito Santo e as férias na casa das tias em Brasília, onde me lembro de devorar um baú de revistas da turma da Mônica, quando não estava passeando ou brigando com minhas primas.
E ainda nem contei de todas as vezes que íamos de carro, passando pelas curvas da estrada de Santos até chegar no pequeno vilarejo da Barra do Sahy, no litoral de São Paulo, onde morava meu avô.
Do Seu João Brasil, o pai do meu pai, eu me lembro bem pouco. Mas nunca esqueci de como minha irmã e eu, ansiosas pela viagem, esperávamos meu pai organizar as malas no carro ao mesmo tempo que a Parati anos 90, movida à álcool, terminava de esquentar para podermos cair na estrada.
A animação prosseguia por vários quilômetros. Mais velha, minha irmã sempre trazia suas fitas para nos distrair no caminho. Fazíamos coro sempre que o toca-fitas contava a história de um garoto que girava o mundo, mas acabou fazendo guerra num país que naquela época eu nem sabia se era longe ou se poderíamos dar uma esticadinha de carro até lá. Até hoje sinto que ela foi a culpada do meu gosto musical.
Eu não tenho sequer uma pista de quantas vezes cruzei as fronteiras dentro da região sudeste, mas eu sempre esperava pelas novas viagens, ainda que os destinos fossem os mesmos. Essas viagens da infância plantaram em mim uma semente que germinou: a do espírito explorador.
Todas essas viagens foram carinhosamente colocadas no meu baú ainda cedo. Aos 13 anos, eu me lembrava disso tudo saudosamente.
Deixei o sudeste para trás e me mudei de mala e cuia para “Sã, Sã, Sã, São Luís do Mará” – aquela da música , que eu cantava antes mesmo de saber onde ficava. Apesar da vida quase nômade, geografia não era meu forte.
E foi saindo do Maranhão que viajei de avião sozinha pela primeira vez. Ah, dessa viagem eu me lembro bem. Era 1999 e eu estava indo visitar a família em Minas, a primeira vez desde que me tinha me mudado. Era aquele tempo em que tínhamos balas de caramelo, sanduíche quente e dava até para despachar malas sem pagar por isso. Os tempos mudaram, eu sei.
Adolescente, viajando desacompanhada, eu tinha algumas pequenas mordomias à minha disposição durante o voo, mas eu não conseguia pensar em nada: a banda de pagode que eu super fã estava no meu voo. O grupo tinha feito um show na minha cidade e o vocalista Vavá estava ali, sentado algumas poltronas atrás. A minha euforia era tanta que nem notei as luzes das cidades passando pela janelinha, meu passatempo favorito nos voos.
Desci do avião em São Paulo e segui para meu próximo portão de embarque. Confinada por algumas horas, sem as facilidades digitais de hoje, eu não teria muito o que fazer. Mas dei sorte. Os mesmos rapazes da banda aguardavam conexão para outro voo. Aproveitei o tempo livre para guardar a vergonha na mala e pedi fotos, autógrafos, e tudo mais. Eu levava comigo uma câmera do meu pai, com um filme de 24 poses. Gastei quase todas em poucos minutos e reservei umas 5 para usar durante as férias. Pura sorte.
Pouco depois, uma turma alegre e falante, andava em minha direção falando em voz alta sobre a vitória do Cruzeiro sobre o Atlético, com sotaque que a gente reconhece de longe. Outra banda que eu amava. Àquela altura, eu já estava treinada na tietagem e terminei o filme antes mesmo de chegar no meu destino. Quem precisa tirar fotos quando passa férias na casa da família?
Fiquei tão fascinada que cheguei em Belo Horizonte e, no aeroporto mesmo, comprei um CD que a banda tinha lançado há pouco. Lendo o encarte, decorei todas as músicas. Na casa da minha vó ainda se ouvia apenas rádio e LPs, por isso meu CD permaneceu na mala, que aliás foi extraviada e só chegou depois de 3 dias.
Eu tenho certeza que aquele vôo não marcou a história do Samuel Rosa. Mas essa viagem é uma das que mais gosto de recordar, sempre que reviro o meu baú de viagens. Remexendo bem, sempre encontro outras histórias que relembro com carinho e me ajudam a conhecer meu passado e entender a viajante que me tornei.
4 respostas
Que relato poético, Rê. S2 Fiquei curiosa sobre qual foi a primeira banda que você tietou… tá no texto ou era pra perguntar mesmo? =)
Quem sabe um dia eu conto! 😀
Adoooro esses relatos, viagens na viagem! Minha filha com 14 anos, 1 ano a mais do que vc no seu relato, ainda sem tanto chão…. Não sabia da sua ida ao Iraque!!!! Bom sempre surpreender, mas vc já é demais!!!
Tenho certeza que aos 14 ela já vivenciou mais que muita gente!
Garota ousada, aos 14 Giovanna já esteve no Egito! Certamente também não se contentará com viagens dentro da caixinha!