Deixe os chinelos em casa e descubra as trilhas da Serra do Baturité

Relato de uma trilha não tão bem sucedida em Guaramiranga-CE.

Sempre achei um saco desarrumar a mala. Você chega de viagem cheio de histórias pra contar e tem que lidar com aquela pilha de roupa suja. Adio esse momento sempre que posso. Coloco a mala num canto meio escondido e deixo para encarar a missão só depois que passa aquela ressaca da volta.

Mas dessa vez eu precisava tirar da mochila o chinelo sujo de lama da trilha percorrida apenas algumas horas antes de pegar o voo pra casa. 

A viagem não foi programada, aconteceu. O aniversário do marido estava chegando e eu estava saturada do home office – há quase 2 meses sem cruzar a porta do apartamento de 50 m². Veio uma promoção de passagem daquelas irrecusáveis e, de repente, estávamos em um voo para Fortaleza, com nossa filha e uma amiga.

A cidade já era uma velha conhecida, então nem pensamos em encarar a agitação das barracas da praia do futuro ou a feirinha da Beira-Mar. 

Passamos dois dias numa praia perto da capital e, de carro alugado, seguimos para o ponto alto da viagem, 865 metros acima do nível do mar. Dos 110 km até nosso destino, pelo menos 30 foram subindo uma daquelas estradas estreitas de serra, na qual prendemos a respiração nos mirantes e nas curvas.

Subindo a serra do Maciço Baturité, rumo a Guaramiranga

Não tínhamos feito muitas pesquisas sobre Guaramiranga, então nos deixamos surpreender com as casinhas coloridas e com a igreja Matriz que, no alto de uma escadaria, fica rodeada por grandes palmeiras imperiais. Almoçamos em um dos poucos restaurantes abertos naquela segunda-feira e percorremos as curvas faltantes até nosso hotel.

Nem precisamos entrar no quarto para perceber que a decisão de espairecer no alto da Serra do Baturité tinha sido acertada: a propriedade em meio a mata, a vista para o vale num dia de poucas nuvens e aquela temperatura fresca de outono que nos fez esquecer que estávamos no nordeste brasileiro.

A vista do hotel Vale das Nuvens, em Guaramiranga

Na recepção, deixaram escapar sobre uma trilha, saindo do próprio hotel. Todo sábado, um guia conduzia os hóspedes por 4 km dentro da mata, para chegar até a Cachoeira de São Paulo. 

Ficaríamos apenas uma noite, então pensamos em percorrê-la na manhã seguinte, guiados apenas pelo caminho bem marcado no aplicativo de mapas do celular.

Duvidando um pouco de nossa capacidade, o recepcionista permitiu ocupar o quarto até um pouco mais tarde. Assim, daria para conhecer a cachoeira e voltar a tempo de um banho antes de seguir para o aeroporto.

Programação decidida, a noite foi de baralho, fondue e um bom vinho.

No dia seguinte, um café da manhã farto, com sucos, pães, bolo e aquela tapioca que nunca falta no Ceará.  Era hora de ir para a trilha. Depois de meses em casa, de pés sempre no chão, o tênis me incomodou. Resolvi ir de chinelos mesmo, que sempre foram bons companheiros, inclusive em outros passeios assim. Mal ouvi quando o marido murmurou algo sobre trilhas e sapatos fechados. Calcei as havaianas, levemente folgadas no meu pé, e partimos. Já no caminho percebi que meu marido estava de chinelos também. “Vai entender esses homens”.

A trilha alternava entre algumas subidas e muitas descidas, clareiras e mata fechada. Por várias vezes, mal conseguíamos identificar o caminho no chão e, precisávamos pisar sobre o matagal para continuar, muitas vezes guiados apenas pelo GPS.

Depois de uma subida estafante, as pernas já fraquejando pediram para descansar. O relógio apressado marcava 11 horas e, com os chinelos escorregando na lama, tínhamos percorrido pouco mais que metade da trilha. Nesse ritmo, não voltaríamos a tempo.

Eu era a mais lenta do grupo. Assumindo a derrota de não conhecer a cachoeira, resolvi voltar. Encontraria um local para esperar e, assim, os demais poderiam apertar o passo e conhecer a esperada atração. Eles foram e eu retornei.

A cachoeira que eu não conheci.

Me acomodei em um tronco de árvore no chão perto de um pequeno córrego que vinha pelas pedras e jorrava sua água por um cano cheio de musgo. Sedenta, lembrei da minha garrafa que tinha ficado na bolsa que meu marido se ofereceu para carregar. A água, para a qual eu torci o nariz na ida, me pareceu mais pura e refrescante que nunca. Bebi e permaneci por ali.

Em algum ponto da espera, coloquei uma música para tocar, mas logo me dei conta de que a playlist que tanto ouço no meu home office abafava os sons da natureza. Tirei a música, fechei os olhos e passei algum tempo meditando, guiada pelo canto das aves e pelo barulho da água correndo. Li um pouco, escrevi uns rascunhos e, então, resolvi retornar para o hotel. Eu já tinha passado cerca de uma hora por ali, certamente o grupo me alcançaria em breve.

Andei sem pressa por uns 40 minutos, apreciando o caminho: “E essas bananeiras tão carregadas? Essas bromélias?” Não tinha notado nada daquilo. Foi só depois de descer um trecho íngreme, que me lembrou saudosamente da ladeira que eu percorria na volta da escola quando eu morava em Minas Gerais, que comecei a notar algo estranho.

Lá embaixo estava uma grande casa branca, imponente, estilo colonial, com janelões pintados de azul e uma escadaria de pedra na frente. Eu definitivamente não tinha feito esse caminho. 

Que casa é essa? Não passei por ela na ida.

Perdida em meus pensamentos, eu me perdi. Tinha usado o celular apenas para fotografar, sem checar o mapa de tempos em tempos. Que erro!

Eu estava tranquila: a bateria era suficiente e era só recalcular a rota para retornar à trilha. Tive que respirar mais profundamente o ar da montanha quando vi: quase dois quilômetros ainda me separavam do hotel, além da grande ladeira que eu havia acabado de descer quase saltitando.

As bananeiras perderam a graça e, se parei pra olhar, foi enquanto recuperava o fôlego. As pernas doíam, o chinelo molhado deslizava mais que nunca. A sede também apertava, especialmente quando eu lembrava do cano esverdeado que deixei pra trás. 

A bifurcação que errei. Fácil enxergar? Pois é, eu não vi.

Comecei a traçar pequenas metas. A cada 100 metros percorridos, faria uma pequena pausa para descansar.  Mas as subidas foram ficando mais íngremes e o cansaço falando mais alto, então reduzi pela metade. “Dividir para conquistar”, dizem por aí.

Tentei escutar ao longe, tentando encontrar algum sinal de que o restante do grupo estaria por perto. Mas depois daquele desvio e andando a passos lentos, eu não esperava que estivessem atrás de mim. 

Faltando cerca de 200 metros para a chegada, meu celular – sem sinal até então – começou a tocar. Quando atendi, meu marido aliviado contou que já estavam mobilizando um funcionário para me procurar. 

Mas sozinha venci a última subida. Me apoiei na placa que demarca o início da trilha, parando por uns instantes para recuperar o ar. “Tá perdida, moça?”, perguntou um pedreiro que trabalhava em uma obra no hotel, “tem um pessoal procurando por você”. “Tá tudo bem, já falei com eles”. E em pensamentos completei: “Perdida, não. Só estou buscando forças para dar os últimos passos até o quarto”. 

Minha vontade era de me jogar na cama e não levantar até o dia seguinte, mas fui direto para o banho e deixei a água quente levar o barro dos pés. Os chinelos tinham ficado na entrada do quarto e, na pressa de não perder o voo, os guardei sujos mesmo. 

Quero retornar a Guaramiranga para fazer trilhas. Conhecer e desfrutar as cachoeiras e voltar para casa com um tênis cheio de lama. O chinelo, por certo, ficará em casa.

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